Lukunga, Ambuila, Ntoto e Mbembe foram alguns dos palcos dos levantamentos nacionalistas no dia 15 de Março de 1961, enquanto Songo, Damba e Uíge (cidade) conheceram a saga revolucionária nos dias posteriores
Muitas das concentrações colónias foram atingidas em simultâneo pela sublevação popular no dia 15 de Março de 1961, em várias regiões da actual província do Uíge, havendo outros levantamentos nos dias posteriores. As acções que pareciam ter um carácter espontâneo foram-se transformando em luta de resistência guerrilheira que culminou 14 depois, em 1974.
Para além do posto administrativo de Kitexi, que mais se sobressaiu, Kipemba (que posteriormente foi designado por Kipedro), Lukunga, Ambuila, que era Nova Kaipemba, Ntoto, Mbembe e outros lugares foram palcos dos levantamentos nacionalistas no dia 15, enquanto outras como Songo, Damba e Uíge (cidade) conheceram a saga revolucionária nos dias posteriores à data.
As revoltas têm em comum sinais de planeamento e organização, que justificavam as baixas coloniais, que iam sendo surpreendidos nos primeiros ataques, como se soube de fontes ouvidas pelo Jornal de Angola, que se deslocou a sede municipal do Songo e a comuna de Lukunga, que dista a 144 quilómetros da cidade do Uíge.
Escritos anteriores deste jornal sobre o 15 de Março apontam Pedro Vida Garcia, Manuel Bernardo, Ferraz Bomboko, Rodrigo Ngodia, Pedro dos Santos, como os principais instigadores da luta nesta região do antigo reino do Congo. Na actual reportagem podem ser encontrados outras referências da génese da luta como António Ninginisa, natural da aldeia do Lembua, Kingotolo, natural da Aldeia Mukamba do Bembe, Keto Pedro, de Kikumbi Ngombe, Pedro Mbunda do Nkusu Mpete, Ferreira Muanga e outros nacionalistas que mais tarde viriam a ser os fundadores do campo de treino de Kinkuzu no Congo, ex-Zaíre.
Trabalhar um ano por 100 escudos e um cobertor
Miguel Pedro nasceu em 1944, no povoado do Ki-luangu, em Lukunga. Disse-se ser um dos autores do ataque ao posto administrativo de Lukunga, quando ainda tinha 17 anos de idade, isso no dia 15 de Março de 1961. Na altura vivia aos cuidados dos seus tios maternos com os quais trabalhava o café, na fazenda destes, antes de fazer parte da idade de contratados.
Segundo ele a dureza da vida do contrato enervava as pessoas. Os brancos viam recrutar os jovens para o contrato nas fazendas pessoais ou da granja do estado onde permaneciam por um ano, a produzirem o café. O soba se encarregava de apanhar os rapazes e depois ia apresentá-los a administração onde eram alistados para posteriormente serem en-caminhados para as fazendas que requeriam a mão-de-obra, necessária para a capina das fazendas do café assim como para a colheita, que eram os trabalhos de eleição da época.
Depois de um ano, o contratado voltava para o repouso. “Eles davam, como pagamento 100 escudos e um cobertor e te diziam, vai embora na vossa sanzala, está dispensado”. Questionado se não era muito, o dinheiro e os bens de pagamento, Miguel Pedro categórico respondeu: “Não era miséria, uma humilhação”, tendo exemplificado que o seu pai tinha 4 mulheres e se por um ano ganhava um cobertor como dividiria para essas mulheres, para além dos filhos.
O homem adulto regressava ao contrato no ano seguinte, depois do repouso de 12 meses. O Pai de Mi-guel Pedro foi ao contrato 7 vezes, até ao ano de 1961. “A pessoa vai e quando chegar a data marcada pelo soba volta novamente no contrato. O próprio nacionalista disse ter começado muito cedo a cumprir o ciclo contratual nas tongas coloniais. “Eu comecei o contrato com o trabalho da escolha de café. Até os acontecimentos de 15 de Março cumpri dois contratos. Passei um ano em casa e no ano seguinte me apanharam mais e fui na fazenda escolher o café”.
De acordo com o nacionalista a parir dos 10 anos as pessoas começavam já a sofrer as consequências dos portugueses. “Isso, a dada altura, começou a enervar a população que dizia que “estes gajos estão a nos explorar demais, vamos matar os gajos”.
Na sua opinião esse descontentamento foi aproveitado pelos mensageiros (activistas) que vinham do Kongo Kinshasa, já influenciados pela revolução de Patrício Lumumba. Citou António Ninginisa, natural da aldeia do Lembua e o Kingotolo, natural da Aldeia Mukamba do Bembe e Bomboko do Kitexi como os mensageiros que julgavam terem vindo de Kinshasa. “O Bomboko depois de ficar aqui durante algum tempo vai a Kitexi, o Ninginisa fica aqui, o Kingotolo passa para o Ntotó”.
Ordem para atacar
“A concentração, no dia, que fomos juntados e nos deram a ordem de atacarmos os brancos colonos no Lukunga tinha sido feita próximo da vila do Lukunga do Bembe, na rota quem vai ao Mbanza Kongo. Vi pessoalmente esses homens no lugar da concentração”, disse demonstrando felicidade por ter estado diante daqueles nacionalistas que mobilizavam as populações para a rebelião.
Todos os jovens dos bairros tinham sido mobilizados a participarem, sendo, então, orientados no local da concentração para que cortassem as mangas das suas camisas e ficassem apenas de tronco nus. “Se tem calça tinha de ser cortada. Era essa a instrução que nos tinham dado. Quem vai combater tinha de ir assim. Era a ordem”.
Depois de dois dias de concentração, que se fazia no Povo Vila, foi dada a ordem de partida, na madrugada do dia 15 de Março. “Com a bravura fomos”. Os homens válidos dos povoados de Kilonde, Kikuva, kiluangu, kinzambi, até os da área do Nsumbi, do Lembua, do Povo Mbundu, todos estavam mobilizados e presentes para o primeiro enfrentamento contra os colonos.
“Saímos às 6 horas da manhã do local da concentração. Atacamos o Lukunga, onde morre só um preto, chamado Makaya Mavangazala, natural do povo Kikani”. Na vila havia apenas dois ou três polícias e o mesmo nú-mero de cabos negros. Não tinha militares. O chefe do Posto Administrativo chamava-se Carvalho. Quase Todos os habitantes brancos da vila de Lukunga tinham sido mortos durante o ataque. Apenas um tinha conseguido safar-se. Alguns que tentaram escapar-se foram alcançados e abatidos, outros que conseguiram desfazer-se dos atacantes, incluindo o manuenses, como chamavam o secretário-geral da administração, foram encontrados mortos fruto dos golpes e dos tiros de kanhangulu.
Lukunga fora ocupado pelos nativos, em pouco tempo. O chefe do posto foi o único que se tinha safado, segundo o homem do 14, como chamam os guerrilheiros que enfrentaram a autoridade colonial de 1961 a 1974. O administrador do posto tinha sido informado sobre a iminência do ataque por parte dos serviços de informação colonial, cujos agentes actuavam em Kinshasa, junto da direcção da UPA, tal como informou. “O regime português acompanhava as movimentações do movimento a partir de Kinshasa”.
Tinham sobrevivido também aqueles que antes se tinham deslocado a Luanda. “Foram os poucos que não tinham sido mortos”, de acordo com as lembranças de Miguel Pedro.
Acrescentou ainda que muitos comerciantes ainda tentaram ripostar ao ataque com as suas caçadeiras. Mas os nacionalistas tinham-se enfurecido com a morte do companheiro, Makaya Mavangazala. “Conseguimos matar o autor do disparo da caçadeira que matou o mano Makaya. Esse branco foi o mais cobarde da vila, era chamado Horismo”.
Confrontado com a razão de ser do ataque contra os comerciantes coloniais ao invés dos fazendeiros, o então guerrilheiro foi categórico em justificar que atacaram os autores do recrutamento dos negros para as roças, que era o pessoal da administração, sobretudo o chefe do posto. “Você não ia ao contrato sem ser alistado pelo chefe do posto”. Questionado sobre as razões que afastaram os sobas da ira popular, ele afirmou que as próprias autoridades tradicionais apenas cumpriam ordens e que muitos deles também cumpriam os contratos mal pagos.
Em resposta houve bombardeamento contra a vila e as sanzalas circunvizinhas de Lukunga. “Caiu uma bomba na aldeia do Mpaku. Na vila foram três que não mataram ninguém porque já tínhamos saído”. O ataque contra Lukunga foi chefiado pelo Tony Gilungua, que era da aldeia do Luangu, que já tinha cumprido a tropa colonial portuguesa, tendo sido, muito depois, o chefe do quartel de Kikomba nas matas, quando passaram para a guerrilha.
“Também tínhamos o Keto Pedro, de Kikumbi Ngombe, Pedro Mbunda do Nkusu Mpete, que era antigo cabo no posto do Lembua, depois de servir também o exército português. Os dois fizeram parte da fundação do campo de treinos de Kinkuzu, de acordo com Miguel Pedro, que foi um dos primeiros instruendos do mesmo.
Informou que durante o ataque contra Lukunga, animada com as palavras de ordem “UPA, Maza, UPA, maza” (UPA, água, o mesmo que a água não pode ser atingida) ninguém saqueou as coisas dos brancos. Tinham sido instruídos a não o fazer. “Diziam-nos que quem assim tentasse, morreria. Dinheiro, você encontra bwé, mas não pode tirar, nem copo de açúcar ou sal, você podia tirar”.
Os colonos do posto de Lukunga
Lukunga tinha 12 ou um pouco mais de comerciantes, para além dos agentes do estado que eram os funcionários do posto administrativo, policias e cabos negros. Já com alguma dificuldade de memorização, Miguel Pedro ainda se lembra de muitos dos moradores da vila do Lukunga, como o Da Cruz, o Roberto, o Leitão, o Carvalho (chefe do posto).
Ainda tinha o branco que gostava que o chamassem com o nome da expressão dos nativos “Paxitunazau, mundele a Ndombi (o Sofrimento que temos, branco negro”, na tradução literal. Este era o único que Miguel Pedro conhece ter conseguiu escapar, fugindo para o posto administrativo da Damba, para além dos que estavam em Luanda. Havia ainda o Carvalho, comerciante, que era caçador, o senhor Morais, que era o chefe da granja, a horta do estado.
Mortes de vingança
Sem remorsos indicou terem morto todos eles conjuntamente com as suas esposas e filhos. “Ninguém ficou. Eram cortejados com as catanas”. Durante o ataque foram utilizadas apenas duas armas de tipo mauzer, sendo maioritariamente armas artesanais. “Porque essa barbaridade”? Quis saber o repórter do Jornal de Angola, sendo-lhe ripostado com o argumento segundo o qual os filhos não podiam sobreviver para não darem continuidade a exploração nos contratos e as matanças que os pais faziam também até contra crianças.
Ainda o JA procurou saber se foram essas matanças indiscriminadas que levava os portugueses a acusar-vos de terroristas, uma questão que o entrevistado disse que eram sim terroristas, assassinos, no entendimento dos colonos. Eles apenas queriam recuperar a liberdade, a dignidade e a soberania e que não se importa com o julgamento que os colonos faziam na sua propaganda.
Enquanto isso, Pinto Luvumbo que acompanhou o JA à comuna de Lukunga acrescentou que o termo terrorismo ou assassinos surgiu como propaganda dos portugueses que passava através dos emissores da rádio, com o propósito de manchar a revolução e esconderem as atrocidades que provocavam contra os colonizados.
“Eles eram os verdadeiros terroristas. Prendiam pessoas em suas casas. Levavam-nas e matavam de forma muito cruel. Violavam mulheres na presença de crianças. Violavam mães e filhas no mesmo lugar. Os grandes terroristas eram os colonialistas portugueses. Era por causa deste terrorismo que nos revoltamos, para além dos contratos”.
Desafiou os historiadores portugueses ou angolanos a terem a coragem “como temos agora” de assumir o que fizeram, para a nova geração julgar. Para ele o que aconteceu faz parte da história e deve ser mesmo contada com detalhe e verdade.
“Perdi aqui o irmão mais velho”
Depois do ataque voltaram ao mesmo lugar da concentração, onde foram traçadas as futuras acções, como os posteriores ataques contra o posto administrativo da Damba, que aconteceu em Abril de 1961. “Perdi aqui o meu irmão mais velho, o Mário Francisco que foi o primeiro a cair. Depois foi o Kyaku que morreu quando teimosamente retirava do mastro a bandeira portuguesa, ao invés de fugir, como lhe pediam os companheiros. Foi daí que eu fugi, indo-me esconder directamente na Serra da Kanda, passando por Mpete Nkusu e Sakamu.
“Com essas mortes do nosso lado, decidi fugir, passando por estrada cujas aldeias tinham sido abandonadas pelos seus moradores, por causa dos ataques, das mortes de colonos que motivaram o abandono de quase todos os postos administrativos coloniais”, disse Miguel Pedro.
Nessa altura, adiantou, as sanzalas, que ficavam nas estradas, estavam despovoadas também. Tinham ficado solteiras as estradas que vão para a Damba, Mpete Nkusu, Kuimba até Congo dya Muanga, e mesmo a via da Serra da Kanda, onde eram visíveis as cubatas que se encontravam abertas, com os haveres expostos já desarrumados, o que mostrava a saída precipitada das pessoas.
Todo o povo tinha fugido para as matas, sobretudo junto da Serra da Kanda onde se tinham concentrado, um arranjo encontrado pelos mensageiros que vinham do Congo e que instigavam aos levantamentos.
Quando ouviram dos ataques contra Mpete Nkusu, Lukunga, Damba os nativos precipitaram-se em buscar refúgios nas matas. Aqui Miguel Pedro encontrou populares que também tinham feito confusão em outras localidades. “Foi daqui que rumei para Kinshasa”, antes de encontrar poiso na base de Muandanji, próximo do Congo.
PINTO LUVUMBU
“Eu participei na luta não vale a pena duvidar”
Pinto Luvumbu, agora com 74 anos de idade, tinha sido enviado, em 1960, a Luanda para aprender a profissão de mecânico e prosseguir com os estudos, antes de ter sido ajudante da oficina do Rimaga, na cidade do Uíge, por pouco tempo. Os pais encontraram no Marçal, próximo de São Paulo, um quarto que arrendaram conjuntamente com os progenitores do seu primo Jota, o Jorge Mbengu, que também estava na mesma condição de estudante e trabalhador.
Trabalhava numa oficina e estudava na escola Don Afonso Henrique, na baixa de Luanda, onde testemunhava as actuações da polícia colonial contra a população negra como os casos que se davam na Liga Africana, onde muitos jovens eram presos e depois mortos. Os colonos atraiam os jovens para irem a liga onde diziam haver festas nas sextas ou sábado. “Quando fossem lá, muitos já não voltavam. Fomos despertados que não fossemos lá, mas mesmo assim os jovens eram perseguidos nos bairros”.
O agora delegado provincial da FNLA, já não faz ideia dos nomes dos jovens que vira serem levados presos, na Liga Africana, e nunca mais voltaram, mas sabe que muitos deles eram de Mbanza Congo, Uíge, Malanje, Cuanza Norte, que já frequentavam classes acima do ensino primário ou eram jogadores ou músicos.
Depois, “nós vimos os nossos mais velhos preparados a irem para a casa de reclusão. Não sabíamos o que iam lá fazer. Só depois do regresso de alguns deles por volta das 7 ou 8 horas e os tiros dos polícias que se seguiam é que demos conta que alguma coisa tinha acontecido”. Disse que era tal o secretismo que muitos jovens abaixo da sua idade desconheciam o que se estava a passar neste dia 4 de Fevereiro, “isso porque os velhos que estavam ligados a esse acontecimento tinham guardado segredo aos jovens os meandros da organizada da acção deste dia.